terça-feira, julho 29

O Futebol

Há pouco menos de uma semana eu estive na Gávea. Pra quem não sabe, além de um bairro de classe média-alta carioca, entende-se por “Gávea” o nome da sede do Clube de Regatas do Flamengo. Fomos levar meu enteado Gabriel – um rubro-negro dedicado, de 13 anos – e um amigo dele ao treino do time, às vésperas do jogo em que o Flamengo empataria sem gols com o Botafogo. Ficamos no estacionamento próximo ao campo de treino, esperando os jogadores saírem para que as crianças pedissem autógrafos, nada mais normal. Até que, em meio aos integrantes do atual elenco do time, surge Andrade, hoje um dos auxiliares técnicos do Flamengo. Me emocionei e pedi à minha esposa que encontrasse uma brecha para me fotografar ao lado do velho ídolo rubro-negro. O resultado abre esse texto, que ficou indo e vindo em minha mente, pedindo por publicação.

Andrade era meio-campo do antológico time do Flamengo de 1981, que foi a Tóquio e venceu o Liverpool, na final do Campeonato Mundial Interclubes. Isso aconteceu no dia 13 de dezembro daquele ano, aniversário da minha mãe. Eu tinha 11 anos e me lembro que obtive uma permissão inédita para ficar acordado com meu avô para ver o time jogar. Talvez tenha sido a primeira vez em que eu dormi tão tarde. Em campo, uma constelação de astros, que venceu os ingleses por três gols a zero. A minha intenção não é fazer uma ode ao time que torço, mas compreender o porquê da visão de um Andrade grisalho me desperta essa conexão tão forte com um passado que acredito ser comum a todos.

Sim, você não precisa gostar de futebol a ponto de ver jogos como XV de Jaú x Saad E.C. ou similares para entender alguns detalhes sobre o esporte bretão que justificam plenamente sua relevância mundial. O esporte – quase sempre – foi uma forma ética, controlada e civilizada de guerra e competição entre homens e grupos de homens. Não se espante, o ser humano gosta e precisa de afirmações de força e soberania sobre seus semelhantes. Está na natureza humana e, possivelmente, escrito à base de adeninas, guaninas e demais integrantes do nosso DNA.

As competições em que o mais forte vence – seja em que habilidade for – remontam aos tempos da caverna e podem ser observadas em outras espécies. Portanto, sem falsos moralismos. Futebol, vôlei, basquete, boliche e todos os esportes constituem uma tentativa de superação de metas e oponentes. O grande toque da civilização foi tornar esse desejo de sobrepor-se algo ético e dotado de explicação moral. O esporte é a disputa controlada e dentro de limites, que o tornam inspirador e fonte de ensinamentos que dotam o ser humano de cidadania.

Quando a gente toma ciência do que é esporte, lá pelos primeiros anos de vida, compreendemos que podemos fazer parte daquilo. Toda criança gosta de correr e jogar bola, até que surgem as primeiras competições informais, nas quais os mais hábeis se destacam dos outros. O código para isso é a associação da destreza com a virtude, algo que desestimula os menos hábeis a continuar jogando. Mais tarde, a maturidade dá a esses jogadores de segundo escalão o bom humor e a capacidade de enfrentar a situação em que os mais virtuosos sempre vencem.

A moralidade do esporte diz que o treino e a determinação são as chaves para ser um bom atleta, algo que praticamente inclui todo mundo como potencial praticante de esporte. E têm lugar aqueles conselhos que ouvimos a cada jogada frustrada: “Veja, se você é ruim no futebol, pode ser bom no vôlei ou basquete”. Quem nunca ouviu isso? E quem nunca foi colocado no gol porque não jogava bem na linha? E quem nunca ouviu que só tinha lugar no time de handebol? São metáforas moralmente legais para “você é ruim, não tem lugar no nosso time”.

Os esportes coletivos têm um parentesco evidente com as guerras, principalmente porque eles se apresentam em diferentes âmbitos. Sempre tomando o futebol como exemplo, podemos pensar que há times dentro de um município, disputando o mesmo campeonato. As rivalidades entre bairros e regiões da cidade são colocadas em campo. Sendo assim, times de diferentes procedências dentro de um mesmo lugar se enfrentam como gangues rivais, dentro de regras e determinações que procuram dar igualdade de condições a todos.

Amplie essa perspectiva para campeonatos que congregam os estados de um país e as nações propriamente ditas, todas se enfrentando em busca do objetivo final – a vitória. O futebol talvez seja o esporte em que a moralidade e o bom-mocismo são menos evidentes. O que dizer de jogos entre Brasil x Argentina ou Brasil contra qualquer outro país da América do Sul? Estão em campo todas as diferenças culturais, o português imperial contra as repúblicas bolivarianas ou platinas, todas formadas na mesma época. Os países mais pobres contra o “gigante continental”. E os jogos entre México e Estados Unidos, nos quais os mexicanos têm a chance de dar o troco pela opressão ianque de muitos anos e pela anexação de terras que os americanos promoveram ao longo do século XIX? Quem achar que essas questões não estão em algum pensamento ancestral dos jogadores, estará enganado.

Os jogadores são os protagonistas da guerra. O técnico é o sujeito que imagina a maneira de vencer o oponente. Quando uma torcida vaia um jogador é porque não o julga digno de vestir o uniforme do time. E o que seria o estádio senão o campo de batalha? E a platéia senão os povos que se enfrentam e são afetados diretamente pelos resultados das partidas?

Desde a década de 1990 que o futebol – e os esportes coletivos em geral – vêm sofrendo com a assimilação do dinheiro na engrenagem que mantém a máquina moral funcionando. Salários altos, propostas financeiras tentadoras, campeonatos mais disputados em países europeus; tudo isso faz com que cada vez mais jovens iniciados sejam despachados para o exterior, em busca de algo que a torcida não consegue associar à guerra. Quando há um conflito entre nações, não há espaço para dilemas morais ou de qualquer outra natureza para explicar o porquê deste ou daquele soldado não combater. Todos são voluntários na defesa do bem comum, certo? E no futebol, quando este ou aquele atleta deixa um time por proposta de outro e abandona o uniforme anterior para vestir uma nova farda?

Andrade, o homem da foto inicial, fez isso ao usar o uniforme do maior rival do Flamengo, o Vasco da Gama. Naquele tempo – fim dos anos 80 – ainda havia algo que não permitia duvidar da honra de um jogador. E eles ficavam anos a fio no mesmo time, como se nos dessem a certeza de que eram torcedores e defensores da mesma causa.

O mundo esportivo moderno é regido pelo dinheiro – assim como quase todas as manifestações humanas – e isso, por mais que estejamos acostumados à rotina do esporte, é um elemento estranho ao todo.

De qualquer forma, há vinte e sete anos, eu não sabia de nada disso. Era apenas um pouco hábil jogador de futebol no colégio, porém, um orgulhoso torcedor do meu time e das pessoas que fizeram essa personificação do que ele representa. Andrade, o velho Tromba, camisa 6, foi um dos responsáveis por isso e eu sou grato a ele.

O Celular de Diamante Do Jota Quest

Vejam essa notícia, meus caros e caras:

"Novos tempos no mercado da música. O Jota Quest vai receber um prêmio inusitado essa semana: um "Celular de Diamante", versão do tradicional "disco de diamante", entregue pelas gravadoras quando um álbum atinge determinado número de vendas. Isso porque o aparelho celular Sony Ericsson contendo músicas do álbum "Até Onde Vai" (termo oficial: "conteúdo embarcado") ultrapassou as 500 mil unidades vendidas. Além disso, foi recorde de vendas da Sony Ericsson, que realizou essa parceria com a operadora Vivo e a gravadora SonyBMG. O conteúdo do CD lançado em outubro e ainda disponível nas lojas é: 5 músicas ("Dias Melhores", "Palavras de Um Futuro Bom", "Mais uma Vez", "Até Onde Vai" e "De Volta Ao Planeta" ), 1 videoclipe ("Palavras ao Vivo"), 1 mini documentário (extraído do DVD "Até Onde Vai" ) e 3 wallpapers (capa do DVD + foto da banda + logo da banda)".

O que pensar disso? Antes de mais nada, sinto saudades sinceras do tempo em que o celular era um telefone, apenas isso. Sei que é legal ouvir mp3, ver televisão, jogar, tirar fotos, mandar e-mails, mas acho sempre que o celular deveria apenas servir para funções telefônicas e todo o espectro de demandas que estão ligadas a essa situação.

Por exemplo, é legal ter agenda, opções de toques polifônicos e tecnologias mil para variá-los de vez em quando. Me aflige ver uma banda de rock sendo premiada com o Celular de Diamante, mas conforta-me que seja o Jota Quest a receber essa "honrosa" menção. São os tempos difíceis, dos discos financiados com a Lei Rouanet, dos DVD's ao vivo pagos com dinheiro do Ministério da Cultura, dos conteúdos na internet, dos álbuns lançados (e somente viáveis) sob a chancela de canais de televisão.

Enfim, a indústria musical, em sua faceta mais conservadora e anti-consumidor está representada nessa notícia e mostra o quanto o Brasil não aprendeu com coisas como selos independentes e do it yourself. E, pior, me constrange ver a quantidade de artistas independentes e promissores no país que não têm qualquer chance de aparecer para um usuário de celular. Mesmo que ele tenha optado por comprar seu aparelho sabendo que teria um conteudo especial do Jota Quest. Será que os aparelhos oferecidos gratuitamente pelas operadores como mecanismo de retenção de clientes estão contabilizados nessa estatística? Eu, como cliente da Vivo, já recebi oferta para ter um Sony Ericsson gratuito e não o quis. Caso tivesse aceito, eu integraria esse grupo de 500 mil usuários/ouvintes?

A propósito: já vi aparelhos com conteúdo do Killers, da Amy Winehouse e do Rappa.
No fim dá tudo no mesmo, não?

A Irritação de Nome Próprio


Diga-me, você veria um filme inspirado totalmente na “obra” da blogueira Clarah Averbuck? Pagaria – ainda que fosse meia-entrada – para ver quase duas horas de uma versão pequeno-burguesa e inconseqüente de sociopatia light, travestida de marginalidade e “busca pela liberdade de expressão”?

Eu não. Mas fui mesmo assim, principalmente porque a atriz escolhida para o papel chama-se Leandra Leal, certamente um dos maiores nomes da dramaturgia nacional. A menina vai longe, se tudo der certo.

Quanto ao filme de Murilo “Unibanco” Salles, podemos dizer que ele constitui um curioso exemplo de bom trabalho sobre um tema inócuo, o que, aparentemente, tira muito do brilho da empreitada.

Lá pelo inicio da década de 2000, a Internet começou a ser popularizada e uma de suas revoluções foi o advento dos blogs. Com eles, praticamente todo usuário da Grande Rede passou a contar com o poder de emitir opiniões e tê-las publicadas em diários – os tais weblogs, depois chamados de blogs – cuja leitura estava ao alcance de todos. Daí vem a história de Clarah Averbuck, uma gaúcha que iniciou-se no ofício dos blogs nessa época, mais precisamente em 2001, quando mudou-se para São Paulo e iniciou as postagens do diário virtual "brazileira!preta". Logo depois ela lançaria seu primeiro livro, “Maquina de Pinball”, no qual narra seu cotidiano na cidade grande, sempre sob o ponto de vista pessoal e versando sobre amor, ódio, solidão e frustração.

Mais dois livros vieram, “Das Coisas Esquecidas Atrás Da Estantes” e “Vida de Gato”, consolidando a figura da moça como uma espécie de ícone desse universo virtual. A adaptação de “Pinball” para o teatro por Antonio Abujamra em 2003 abriu caminho para a idéia de trazer um mix das histórias de Clarah para o cinema, levada adiante por Elena Soarez e Melanie Damantas, que escreveram o roteiro para Murilo Salles produzir e dirigir Nome Próprio. Ok. E daí?

O filme tem dois méritos bastante louváveis, além da atuação prodigiosa de Leandra Leal: a estética anti-Globo, cheia de silêncios, escuros, vocabulário nada moderado e cenas de sexo implícito – mais reais que as explicitas – e uma aura politicamente incorreta. E, além disso, um time de atores praticamente desconhecidos do grande público, todos com cara de amadores e iniciantes, conferindo ao filme outra aura, a de filme independente.

Assusta, no entanto, a seriedade com que as narrativas umbiguistas de Clarah Averbuck são tratadas por esse pessoal "das artes". Longe de ser um fenômeno ou uma voz a ser ouvida, a blogueira e sua vida passam por uma análise nada isenta por parte do roteiro e tem seu modus vivendi quase glorificado e legitimado, ainda que isso tudo pareça contundente e cru na tela. A Camila de Leandra Leal vive uma marginalidade falsa, experimenta e procura suplantar limites irreais e clama por uma dúbia liberdade de expressão. Todo o suposto arrojo da personagem – que pode ser confundido com má índole, prostituição e mau-caratismo explícitos – é produto de uma sociedade paralela e extremamente tolerante com os desvios sociais e psicológicos, na qual os jovens experimentam toda sorte de drogas e enchem a cara de bebida alcoólica, não como reflexo de suas vidas miseráveis, mas para glorificar o status “marginal”, algo que é mantido com um código de comportamento e conhecimento superficiais da realidade.

É irritante ver uma jovem mulher escrevendo num computador à base de anfetaminas reclamando do namorado que a pôs para fora do apartamento dele porque ela transou com outro, em vez de vê-la procurando um emprego ou algo assim. A alienação atinge um nível desconfortavelmente grande, afinal de contas, a vida dessas pessoas parece existir e fazer sentido apenas nos sites da Internet. Diante da vida real, toda a maquiagem e esperteza somem num redemoinho de erros.

Enquanto clama por uma liberdade de escrita, exercida através da descrição nada ética de suas aventuras em seu blog, Camila não hesita em trair amigos, namorados, leitores e abusa de todos – e talvez dela também – para satisfazer apenas a si mesma, deixando de lado qualquer possibilidade de coexistência.

A pesquisa de Leandra Leal para o papel deu-se com a própria Clarah, mas talvez o trabalho da atriz e sua dedicação ao filme e ao personagem seja muito mais legítima e verdadeira que as palavras de Averbuck. O charme do filme tem muito de sua razão de existir na tênue fronteira que coloca o sofrimento de Camila/Leandra/Clarah em dúvida o tempo todo e na irritação que tanta alienação travestida de marginalidade pode causar em pessoas que não vêem o mundo sob a ótica de um monitor.

Prepare seu estômago e procure ir acompanhado para poder meter o malho em muitas situações ao longo do filme.


quarta-feira, julho 23

O Disco do Justus Levado a Sério


Amigos, amigos, estou ouvindo o disco de Roberto Justus, Só Entre Nós, lançado recentemente pela Sony/BMG. Fico pensando em como o mundo é um lugar interessante e irônico.

Justus é um empresário bem sucedido do ramo de comunicação que surgiu para a mídia nos anos 90, após casar-se com a apresentadora de TV Adriane Galisteu. Não deu certo. Depois casou-se com outra loura falante da TV, Eliana, aquela que cantava uma música falando sobre os dedinhos. Não deu certo. Hoje ele é o marido da filha da Garota de Ipanema, Ticiane Pinheiro.

Ele também é o CEO do Grupo Newcomm, uma das maiores empresas nacionais no ramo de cases e coisas que versam sobre o assunto comunicação. Imagino que empresas como essa sejam responsáveis pela banalização da comunicação empresarial, pelo anglicanização da publicidade, pela adoção da filosofia de trabalho calcada em palavras e conceitos subjetivos como “empreendedorismo”, “proatividade”, “alavancar negócios”, "target", "budget", enfim, pelo teatro de vaidades que existe nesses lugares.

Bem, sou intencionalmente leigo nesses aspectos e minhas opiniões podem ser motivo para a criação de um case sobre a desinformação, mas, uma coisa lhes garanto, amigos, eu gosto do Justus não por ser bem sucedido, mas por ser um cara que não tem medo de pagar micos. Seu disco é um mico, um King Kong, um elefante branco tão grande que me atraiu a atenção a ponto de merecer um texto, hum, sério sobre os motivos que o levaram a existir. O homem gravou clássicos do cancioneiro mundial com uma baita cara-de-pau. Uma olhada no site da Saraiva e me deparo com o seguinte textinho sobre o Só Entre Nós:

“Em 2007 Justus foi convidado para fazer uma participação no show de um amigo e o que era para ser apenas uma brincadeira acabou se tornando uma coisa séria. Como em todos os seus negócios, Justus colocou todo seu empenho na gravação de seu primeiro CD intitulado “Just Between Us”. Justus produziu uma tiragem limitada de apenas duas mil unidades e o álbum tornou-se objeto de desejo entre seus fãs. Este álbum chega agora pela SONYBMG com seu nome em português Só Entre Nós, mas com o mesmo repertório: os grandes sucessos da musica internacional.”

Sentiram a ironia com o título em inglês quase formando o nome JUSTUS? Just Between Us? Viram o tino comercial mambembe para a coisa? Quase posso ver executivos – como os que ele demite em O Aprendiz – pensando nas possibilidades de nomes e imaginando como agradar o homem. Mas existe muita coisa sobre o disco que o mundo precisa – ou não – saber.


O repertório avilta e joga na lama do mau gosto momentos de Beatles, Louis Armstrong, Rod Stewart, Elvis Presley, Elton John, Frankie Valli, Nat King Cole, Frank Sinatra, Mamas & Papas, em seus sucessos mais manjados, banalizados e pasteurizados, levados a cabo por uma big band de dez pessoas, comandada pelo talento musical de Afonso Nigro, o produtor. Para quem não sabe ou não lembra, Nigro já foi líder do Dominó, famosa boy band brazuca oitentista que grassou na parada de sucesso nacional com canções que escorraçavam a inteligência da nossa juventude. Dizem que Gugu Liberato estava por trás do Dominó, ou vice-versa, enfim, Nigro é o maestro do disco de Justus e executa todas as composições como se fossem uma só.

O modelo a ser seguido é daquelas bandas de baile, nas quais o teclado faz a diferença e dá essa impressão de uniformização do mal. Sem noção de arranjo ou interpretação, Entre Nós flui como um desses eventos de engravatados e emproadas, regado a muita aparência e bebidas espumantes, tudo muito brega e constrangedor.

Veja a inclusão de “Perhaps Love” no repertório. Ela figurou num disco obscuro do cantor country John Denver gravado em 1983, mas foi recolocada no mapa como trilha sonora de um comercial no início dos anos 90. Com a participação do tenor espanhol Plácido Domingo na gravação original, “Perhaps Love” é "interpretada" no disco de Justus por Agnaldo Rayol. A sutileza do dueto de Denver e Domingo é transformada num engalfinhamento estético de Justus com Rayol, certamente pensando apenas na objetividade funcional, ou seja, a voz pop e a voz erudita, apenas isso.

Em “Tonight’s The Night”, de Rod Stewart, nosso amigo Roberto conta com a participação imperdoável (mais uma para a extensa coleção) de Paulo Ricardo. Justus deve ter pensado: essa canção é rock, precisa de alguém totalmente rock para dar veracidade à minha interpretação. Paulo Ricardo também participa da execução sumária de “Your Song”, de Elton John. Dizem ainda que os discos American Songbook, de Rod Stewart, serviram de inspiração para o conceito de Só Entre Nós. É possível.

As primeiras duas mil cópias foram compradas pela Daslu, famosa boutique paulistana para serem dadas como presente para os clientes mais assíduos. O que pensar disso? Você gasta uma fortuna na loja e ganha Justus trucidando clássicos do pop internacional? Anti-marketing? Quem compra na Daslu, conhecida por envolvimentos com sonegação fiscal, talvez mereça mesmo um disco desse quilate.

O mau gosto, senhoras e senhores, chegou a um ponto de não retorno. Os conceitos do que é bom e ruim, cool e brega foram levados a um extremo que permite essas situações. Essa gente que pensa e age como se estivesse em outro país, mostra a total incompetência para manifestar-se de uma maneira artística, quando é necessário.

É engraçado ver Justus na televisão demitindo as pessoas que participam de seu programa, ainda que ele seja uma versão tupi de The Apprentice, show americano que traz Donald Trump como o empresário durão e mauzão. O laquê de Justus é fichinha perto do cabelo aerodinâmico de Trump. Ouvir Justus, entretanto, só como piada. De gosto duvidoso, claro.

Você pode dizer: esse tal de CEL é um cara despeitado, malhando o executivo bem sucedido com essas noções de crítico musical. Então ele não sabe que o Justus não deve ser levado a sério como cantor? Deve ganhar num mês o que Justus ganha em um minuto. Se você pensou isso, não está errado, pelo menos no que diz respeito aos vencimentos. De resto, é preciso que alguém se manifeste com o mínimo de propriedade sobre um evento – ou case – dessa natureza. Um disco do Justus, senhoras e senhores, é a abertura de um buraco negro na música, seja ela pop, rock ou para boi dormir.

Track list:

- What A Wonderful World

- I’ve Got You Under My Skin

- Unforgettable – dueto com Cathy Justus Fischer

- Yesterday

- Perhaps Love – dueto com Agnaldo Rayol

- Can’t Take My Eyes Off Of You

- Always On My Mind

- Your Song – dueto com Paulo Ricardo

- Tonight’s The Night – dueto com Paulo Ricardo

- Something

- My Way

- California Dreamin’


domingo, julho 20

Nós Somos O Coringa


O universo das HQ’s tem uma regra de ouro não revelada: o vilão é sempre mais interessante que o herói. Motivos não faltam para isso, talvez o mais evidente seja a capacidade do vilão revelar o lado mais podre e asqueroso do ser humano, seja através daqueles pensamentos e atitudes que chutam as noções de correção para escanteio ou, simplesmente, pelo uso indiscriminado da maldade. Por alguns momentos – porque o herói sempre vence no final – o vilão domina a história usando (perdão pela redundância) toda a sua vilania e todos nós soltamos contidos risos atávicos de satisfação, que deveriam ter ficado em alguma encruzilhada da nossa evolução.

O que me motiva a adentrar esse assunto é, claro, o novo Batman, que acabei de ver no cinema. Mais que isso: o que me assustou no longa de Christopher Nolan foi a capacidade de transcender o âmbito cinematográfico e, por conseguinte, deixar de lado toda a pirotecnia tão comum aos filmes de ação, para penetrar nos subterrâneos que sustentam a história do Batman. Entenda: a pirotecnia está toda lá, em efeitos especiais de tirar o fôlego, mas eles são secundários aqui. Aliás, adianto que qualquer análise desse espetáculo sob a ótica restritiva de tópicos como roteiro, direção e mesmo capacidade dramática dos atores será sempre insuficiente. Batman – The Dark Knight não é apenas cinema. Nolan conseguiu, provavelmente inspirado pelo roteiro que ele mesmo escreveu e pela total compreensão das noções básicas do dilema do herói x vilão, encerrar discussões sobre o assunto e escancarar a sutileza dos traços dos quadrinhos num debate terrível sobre a mente humana. Exagero? Não, não mesmo.

Filmes de heróis foram péssimos ou maravilhosos. X-Men, Homem-Aranha, Homem de Ferro, Hulk, Hellboy, Quarteto Fantástico, Superman, até mesmo filmes sérios e metafóricos como Corpo Fechado (Unbreakable – 2000), dirigido por M. Night Shyamalan. Os outros episódios cinematográficos do próprio Homem-Morcego foram desastrosos, aqueles dirigidos por Joel Schumacher e Tim Burton, uma sucessão de equívocos e visões moderninhas com transgressão estética confundida com mau gosto. Exceto pelo anterior, Batman Begins, também dirigido e escrito por Nolan, trazendo o surpreendente Christian Bale no papel do milionário Bruce Wayne, o velho morcegão caminhava para uma injusta carreira na tela grande.

Pois bem, temos então Batman – O Cavaleiro das Trevas. A história traz nosso herói mascarado às voltas com seu maior inimigo, o Coringa. É dele que quero falar e não tem nada a ver com a atuação de Heath Ledger. Antes, porém, é preciso dizer que Ledger teve seu maior momento no cinema na pele do terrível criminoso desfigurado. Nenhum papel vivido pelo jovem ator australiano – precocemente morto no inicio desse ano – foi tão arrebatador quanto esse. Dizem os rumores que a overdose de tranqüilizantes que o matou num quarto de hotel foi uma conseqüência da atuação e pesquisa de Ledger para encarnar o Coringa. O próprio ator disse em entrevistas que usou várias fontes de inspiração para encarnar o maior rival do Batman, inclusive as performances de John Lydon à frente dos Sex Pistols e do P.I.L.

O que precisa ser dito é que a alquimia dos quadrinhos criados por Bob Kane e Bill Finger para a DC Comics, a visão de Nolan ao dirigir o filme e escrever o roteiro e, sim, a atuação de Ledger, proporcionaram um painel terrível das mais escuras facetas humanas.

O Coringa nunca foi um bandido comum. Ele nunca cometeu seus crimes visando lucro ou algo no gênero. Sua maldade é ilimitada, sua visão da humanidade é a mesma que um cientista tem de suas cobaias, e ele se vale de uma isenção – proporcionada por sua condição mental, digamos, alterada – para brincar de machucar quem ele quiser. Há quem diga que o Coringa não é um mero louco, mas alguém terrivelmente são, a ponto de desenvolver um estado de percepção, digamos, superior ao resto das pessoas.

Ao longo do filme ele manipula pessoas, fatos, se vale da influência e do medo que gera nos criminosos comuns e vislumbra com exatidão o alvo que precisa ser atacado. Ele é um agente do caos – como o personagem se define em certo momento – e não pretende parar. Na verdade, o Coringa propicia reflexão sobre a própria natureza do herói e a coloca em xeque, a partir do momento que as regras morais que são seguidas por Batman – e não por ele, Coringa – são os verdadeiros mecanismos que engessam a sociedade.

Em miúdos: o Batman precisa do Coringa e vice-versa. Por isso a idéia maior não é destruir o herói mascarado, mas atacar os valores e erodir lentamente a sociedade que ele defende. Levar o caos aonde existe ordem. Batman, por sua vez, não se dá conta de que precisa de gente como o Coringa para existir. Enquanto criminosos comuns são perseguidos e presos em Gotham City – uma metáfora sinistra da sociedade americana do século XXI criada pelos governos Bush – pela ação da Justiça (personificada pelo promotor Harvey Dent – vivido por Aaron Eckhart), o Batman assume uma condição secundária no cenário, apenas ajudando a polícia e talvez combatendo o crime de uma maneira mais rápida e eficiente. Aliás, convém lembrar da atuação de Gary Oldman no papel do Comissário Gordon. Ele é o homem comum no olho do furacão. Entre bandidos, corrupção e reviravoltas mil, Gordon é o policial que ainda acredita em valores, que vai pra rua prender os ladrões e tenta voltar pra casa toda noite. Oldman – que viveu um policial viciado em drogas em O Profissional, de Luc Bresson – está soberbo, assim como Morgan Freeman, Michael Caine, o elenco de apoio é um desfile no tapete vermelho de Hollywood.

Quando entram em cena a corrupção e a falta de ética, Batman, Gordon e Dent se vêem incapazes em lidar com a situação, pois eles mesmos são vítimas em potencial da mesma inversão de valores que tentam combater. Batman/Bruce Wayne se vê às voltas com o sacrifício de sua vida normal para combater o crime e Dent tem sua vida modificada para sempre por não se corromper. A partir disso, surge outro inimigo do tradicional do Batman, o Duas Caras. Por trás disso tudo, se valendo de uma inteligência privilegiada, o Coringa manipula a todos como marionetes.

Em poucos filmes de heróis se viu um desnudamento tão grande da psique humana. Talvez em alguns momentos da saga X-Men, pela própria dualidade entre mocinhos e bandidos proposta pela trama de Stan Lee, tenha sido tão “normal” ser mau e tão “chato” ser bom. Em Batman, talvez tristemente, ser “mau” é praticamente ser humano e isso é assustador. Não se engane com toda a linguagem corporal exagerada e genial do Coringa de Ledger. Está tudo ali.

Batman – The Dark Knight é um passeio audacioso no lado escuro da alma e extrapola o âmbito dos filmes de heróis coloridos e justos.


sexta-feira, julho 11

WALL-E - Nasce Um Clássico


WALL-E, o novo filme da Disney/Pixar é um clássico. Supera facilmente outras realizações como Procurando Nemo ou Carros e periga destronar os quase insuperáveis Monstros S.A e Os Incríveis.

A sigla, que significa Waste Allocation Load Lifters – Earth Class (algo como “lixeiro classe Terra”) é o indicativo do que será visto na tela. O planeta foi abandonado, transformou-se num imenso vazadouro de lixo, após séculos de maus usos pela Humanidade. Nesse cenário surge WALL-E, o último de sua série, ainda vagando por uma paisagem especialmente desolada, pontuada por pilhas enormes de lixo, que ele mesmo constrói sistematicamente. Sua única companheira é uma pequena barata, que vive feliz em meio ao lixão global.

Sua rotina de sete séculos de coleta de lixo acabou por danificar algum circuito cognitivo, o que conferiu ao pequeno robô um “defeito” peculiar: personalidade. WALL-E desenvolveu carinho pelos objetos que coleta e, por conseqüência, pela humanidade. Ele vê trechos do mesmo filme toda noite (“Bonequinha de Luxo”, que empresta sua canção “Put On Your Sunday Clothes” para a abertura do longa) e sonha com um mundo diferente. Podemos dizer que WALL-E sente saudades de um mundo que ele não conhece completamente, algo que o faz sentir-se pequeno.

Um belo dia a senha para essa mudança aparece na forma de uma visitante inesperada. EVE, uma sonda-robô desembarca nas vizinhanças e começa a vasculhar o cenário, em busca de algo. O encantamento é imediato e WALL-E não mede esforços para permanecer próximo de EVE, mesmo depois que alguns fatos acontecem.

As referências existenciais no filme são um prato cheio para a elaboração de teorias mil sobre o que vemos na tela. As metáforas são muitas e preciosas. A preocupação com a ecologia é o pano de fundo para toda a ação. É curioso que o filme mostre máquinas como guardiãs de aspectos diferentes da vida humana, seja a busca por melhorias como a determinação de manter tudo em seu lugar, confrontando as opiniões quase o tempo todo.

A solidão de WALL-E é sentida facilmente ao longo do filme. É uma condição que não foi fruto de escolha, mas mostra o quanto é possível permanecer em uma realidade opressora que permita sonhos e aspirações, que vêm, ironicamente, em forma de “defeito”. Há referências na cultura pop sobre como esses enfoques diametralmente opostos sobre a presença de máquinas no cotidiano do ser humano, definindo e transformando o mundo que ele habita. Dou três exemplos:

Donald Fagen, integrante do duo Steely Dan, lançou seu primeiro disco solo em 1981, The Nightingale, um trabalho praticamente conceitual sobre as visões de futuro que o mundo experimentava na época. Era um fato a ser consumado que as máquinas poderiam resolver todos os problemas do ser humano, facilitando sua vida a tal ponto que ele teria tempo de sobra para ser mais feliz.


A Trilogia Matrix (especialmente o primeiro filme) traça um painel assustador de um mundo que foi dominado pelas máquinas, não as simpáticas criações que Donald Fagen pensou, mas seres conscientes e especialmente cruéis com o homem.

Em 1971 Marvin Gaye lançava seu disco chave, What’s Going On. Foi a obra-prima definitiva da carreira do cantor, constituindo um feixe de canções cheias de questionamentos sobre o mundo, a sociedade e o futuro, sob uma perspectiva que oscilava entre o realismo e o pessimismo. Em “Mercy Mercy Me”, Marvin Gaye fala de oceanos poluídos, rios cheio de mercúrio, superpopulação e uma série de conseqüências que os maus tratos ao planeta podem trazer.

Voltando. O filme da Pixar condensa diferentes visões da mesma moeda, azul e branca, cada vez mais suja e mal administrada, não poupando o ser humano da redução ao papel mais humilhante já visto num desenho animado. Detalhes tão pequenos como o uso inteligente do silêncio e uma bela canção inédita de Peter Gabriel (“Down To Earth”) na trilha fazem de WALL-E uma pequena revolução na linguagem do desenho animado. Mais que uma obra de animação, o diretor Andrew Stanton (que dirigiu Procurando Nemo) obteve um belíssimo filme, capaz de disputar prêmios com histórias cheias de personagens de carne e osso. WALL-E pode ser mais humano que quase tudo lançado em 2008.

Antes que eu me esqueça: é preciso avisar às platéias de filmes como WALL-E que nem todo longa-metragem de animação é, necessáriamente, engraçado e feito para provocar risos do espectador.

O Que Steve Jobs Tem A Ver Com Isso?

A cada nova história contada pela visão impressionante da Pixar, os conceitos de animação precisam ser revistos ou, no mínimo, ampliados, tamanha é a grandeza do espetáculo colocado nas telas.

A evolução desde Toy Story (1995) é notável e merece um pouco de história. A existência da Pixar inicia-se em meados dos anos 80, como uma subsidiária da Lucasfilm. Em 1986, Steve Jobs (sim, ele mesmo, o dono da Apple) comprou a empresa e a tornou independente, o que facilitou a aproximação com os Estúdios Disney. A realização de Toy Story marcou o inicio da colaboração entre as duas partes, o que traria uma seqüência de lucros e prêmios cada vez mais expressivos, chegando a totalizar treze Oscars e três Globos de Ouro, entre outros menos importantes, além de uma interessante quantia estimada de dois bilhões e meio de dólares de bilheteria.

A realização de Carros (2006) seria o último da parceira entre as duas empresas, devido a desentendimentos freqüentes entre Jobs e o presidente da Disney, Michael Eisner, algo que resultou na compra da Pixar pela impressionante soma de sete bilhões e meio de dólares, o que transformou Steve Jobs no maior acionista da empresa.

Por coincidência, WALL-E é cheio de referências estéticas à Apple, desde o I-Pod que o robô utiliza para ver seu filme preferido, passando pelo design de todos os outros personagens cibernéticos que aparecem no filme, principalmente EVE, que parece um periférico futurista criado pela companhia de Jobs. Deve ser legal ser dono de algo como a Pixar.